04 - Falas, diálogos e barks
Quais as diferenças entre os diversos tipos de fala, e como abordar cada um.
Considero que traduzir falas é um dos aspectos mais complexos em tradução, não só por exigir amplo domínio da gramática (para saber como e quando quebrar ou torcer certas regras), mas também porque exige reconhecer os próprios viéses linguísticos e lutar contra eles, tentando evitar que o texto tenha regionalismos específicos demais que possam afetar a compreensão dos jogadores.
Particularmente, diálogos são um grande desafio para mim, uma pessoa com certa dificuldade em mudar a "voz" para se adequar ao estilo de fala de diferentes personagens. Ter experiência torna certas coisas mais fáceis, mas não elimina manias que cultivamos a vida toda e ainda usamos no cotidiano fora do trabalho, exigindo um grande nível de autoconhecimento e autocrítica a níveis linguísticos. Ao mesmo tempo, há pessoas que possuem uma grande facilidade em dar vida a personagens diferentes e manter a consistência no estilo — e eu tenho a sorte de trabalhar com várias delas, e frequentemente peço auxílio ou opinião sobre como lidar com certas expressões que não estão caindo bem para este ou aquele personagem.
Uma das maiores dificuldades, eu diria, é que o tradutor precisa desenvolver uma certa capacidade intuitiva de captar o estilo do personagem possuindo informações mínimas — porque, lembrem-se, nem sempre há contexto para consulta — e ser capaz de reconhecer a "fórmula", por assim dizer, para continuar reproduzindo aquele tipo de fala de maneira consistente. Embora não seja incomum haver guias de estilo para personagens (e eu já montei ou ajudei a montar vários), poucas pessoas vão ser capazes de lembrar todos os pormenores de 5 ou mais personagens diferentes e reproduzir, sem erros, as características de cada um.
Aquela capacidade mais intuitiva de captar o estilo não é exatamente uma habilidade inata, mas algo que pode ser desenvolvido ao longo do tempo, a diferença é que certas pessoas — principalmente aquelas mais próximas ao mundo das artes — trabalham esse aspecto desde antes de entrarem no mundo da tradução, seja de maneira consciente ou não.
Porém, nada disso muda o fato de que...
Diálogos são difíceis
Reproduzir um diálogo que soe natural na forma escrita sempre vai ser um desafio, não só pelos nossos viéses linguísticos ditados pelos regionalismos — falo isso como nativo do "dialeto caipira" que precisa, conscientemente, abandonar muitos vícios de linguagem no texto — mas também porque tentar implementar fala coloquial letra por letra pode acabar pesando a leitura, e não existe fórmula ou regra que defina um ponto na qual a leitura se torna desconfortável ou cansativa. Por exemplo, si eu começá a iscrevê assim, como us caipira fala, vai soá istereotipadu e vai dificultá intendê umas palavra, tornando a leitura mais lenta e difícil, especialmente para quem não está acostumado. Se o jogo seguir o caso clássico de associação tradutória entre uma fala de redneck e o sotaque caipira, por exemplo, a marcação da fala caipira no texto vai precisar ser muito mais contida, garantindo que a leitura possa fluir sem "travar" demais. É preciso saber medir a reprodução de um aspecto linguístico cultural para que não atrapalhe a fluidez da leitura. Uma pessoa considero que faz isso muito bem é o Paulo Moreira, onde os diálogos e expressões que ele coloca nos próprios quadrinhos soam naturais e adequados ao contexto, sem cometer exageros.
Essa newsletter aqui, por exemplo, é escrita completamente em tom informal: eu escrevo "como eu falo", com algumas exceções onde utilizo conscientemente uma estrutura mais formal — como escrever "lembre-se" em vez de "se lembre" ou "não se esqueça" — para garantir que o texto não vá ter quebras ou pausas onde não quero. Essas são decisões seriam diferentes em uma fala "de verdade" dentro de um jogo, e a abordagem pode variar se a fala é parte de um diálogo que vai ser dublado, se é um bark, se é um tutorial com narrador, ou se é um texto de marketing falando com o jogador. Ou seja: eu utilizo meu conhecimento linguístico para medir o uso do meu vocabulário e da minha ortografia, me adaptando ao meio no qual o texto será reproduzido e analisando se isso é adequado ao contexto e como será encarado pelo leitor.
Consigo sempre aplicar isso de maneira perfeita? Não, ninguém consegue, por isso que ter uma equipe diversa, com a qual se pode conversar e fazer perguntas, colabora para a maturação dessa habilidade e, coincidentemente, harmonização no estilo dos personagens — porque, acredite, não tem nada mais difícil do que fazer múltiplos tradutores lerem e entenderem os personagens de forma parecida, tentando garantir que o estilo deles seja mais ou menos parecido a fim de evitar uma mão pesada na edição posteriormente. Há muita sutileza envolvida e, quanto maior o conhecimento linguístico e o referencial literário, mais fácil se torna entender os porquês de certas abordagens funcionarem melhor que outras, além de poupar a necessidade de dar explicações imensas — com devidos contextos culturais e exemplos — sobre o motivo de ser preferível fazer assim do que fazer assado.
Fora isso, videogames são frequentemente traduzidos às cegas, então quando se trabalha em equipe, é essencial conseguir "captar" a forma que certos personagens falam, através da memória de tradução do projeto, e replicar aquele estilo na sua própria tradução do mesmo personagem sem desviar demais do que já existe. Não é incomum, especialmente em projetos longos e com equipes grandes, às vezes ter a sensação de que a personalidade ou a forma de um personagem falar muda brevemente antes de voltar ao habitual. Esse tipo de ocorrência não é um atestado de qualidade da tradução, mas sim da complexidade do trabalho envolvido.
Barks, e a diferença dos diálogos
Um tipo de fala que frequentemente precisa ser traduzida é a chamada bark: frases curtas e rápidas, ditas em contextos específicos por personages próximos ao jogador. Sabe aquelas frases em jogos de tiro, onde personagens gritam dezenas de variações de "Reloading!" ou "Fire in the hole!" e afins? Isso são barks. Sabe as frases soltas que NPCs de Skyrim ou de GTA falam aleatoriamente na rua quando o jogador passa perto? São barks também. Embora não haja uma definição "oficial" para o termo, pode-se dizer que são frases soltas de reação a eventos diversos, dando uma sensação de que o mundo é mais "vivo" e construindo a ilusão de que o jogador não é o único humano presente.
Em diversos gêneros, barks são um aspecto essencial da experiência de jogar, trazendo uma quantidade substancial de texto que precisa não só ser traduzido com alta qualidade, mas ser adequado para múltiplos contextos — já que nem sempre sabemos quando as frases serão ativadas. E embora esses tipos de falas não sejam o suficiente para exprimir muito da personalidade do locutor, elas ainda devem carregar características do personagem em questão — e certos jogos possuem até barks diferentes para personagens específicos.
Como tudo mais na área de localização de videogames, cada projeto é diferente, nem todo cliente vai ter o nível de esmero necessário com o material de referência — isso se os tradutores receberem alguma referência — mas, ainda assim, é possível tomar certas precauções para evitar que as frases soem dúbias ou não se encaixem no contexto. A primeira coisa a analisar é se o jogo vai ter...
Dublagem
Nem todo jogo vai ser dublado, o que significa que certas preocupações, como timing e uso de bilabiais, deixam de ser relevantes. Desnecessário dizer que um jogo sem dublagem permite uma abordagem muito mais livre na tradução, seja de barks ou de falas no geral. Não vou me alongar nessa parte porque vou falar sobre tradução para dublagem na próxima newsletter, já que exige um certo cuidado não só por envolver outros profissionais também — os dubladores — como por ser impossível modificar o texto depois de enviado e gravado.
Gatilhos
A segunda coisa para ter em mente é o contexto no qual os barks serão ativados. Eles sempre funcionam através de gatilhos, sejam de eventos automáticos do jogo ou de alguma ação do jogador, então ser capaz de compreender quando uma determinada fala vai ser usada permite abordar a tradução com mais cuidado. O caso do "Reloading!", por exemplo, tem grandes chances de ser usado em um momento de tiroteio intenso e que vai ser falado no momento que algum personagem ficar sem balas. Em um jogo ao estilo Skyrim, por outro lado, temos frases como (parafraseando) "You shouldn't have come here!", geralmente ditas quando o jogador invade um espaço dominado por alguma facção adversária. Já em algo como GTA, não seria difícil de encontrar frases genéricas ao nível de "I can't believe he did that!", que podem ter diversos gatilhos diferentes nas mais variadas situações.
Como o trabalho de um tradutor não é traduzir palavras, mas sim captar o sentido e elaborar algo equivalente, reconhecer o contexto é extremamente importante, principalmente por se conectar ao terceiro ponto...
Repetição e estilo
"Repetição" porque barks possuem diversas variações — às vezes dezenas — para a mesma frase. Pense no caso do "Reloading!": seria cansativo ouvir a mesma frase sendo dita da mesma forma o tempo todo, então a ideia que a sentença passa é repetida de outras maneiras, que também preciam ser traduzidas, como "Out of ammo!" ou "I'm out!" ou "Need to reload!", e por aí vai. A tradução, consequentemente, precisa traduzir cada uma dessas variações, e de maneira que faça sentido na língua alvo sem ser literal demais. Caso haja dublagem, ainda é preciso que a sentença caiba dentro de um timing bem específico.
A princípio não parece tão difícil, mas quando você está traduzindo a vigésima variação da mesma coisa e já esgotou todo seu conhecimento de português, ainda vai ser preciso queimar mais alguns neurônios para inventar algo que seja plausível o suficiente para a situação, mesmo que não ocorra no mundo real.
"Estilo" entra na equação quando os barks são ditos ou por NPCs específicos que acompanham o jogador — como as frases soltas que aliados falam durante as batalhas em Persona, por exemplo — ou são falas reproduzidas por NPCs que possuem uma representação cultural ou um arquétipo específico. Tipo, ok, parabéns, você conseguiu pensar em 20 variações genéricas de "Reloading!" para um jogo de tiro se passando na frente oriental da Segunda Guerra, mas consegue pensar em mais 5 ou 6 que cada um desses três personagens específicos vão falar, entregando traços culturais ou da personalidade deles?
Tamanho
Mesmo quando não há dublagem, os barks não podem ser muito longos, já que são frases rápidas que não ficam muito tempo na tela. Isso funciona em completa oposição aos diálogos propriamente, que são longos porque são o ponto focal, aquilo que os jogadores devem prestar atenção. Barks têm, por sua natureza, o objetivo de serem falas de fundo que não roubem a atenção do jogador, portanto, não podem ser longos e nem destoar demais do que está acontecendo. Pense, por exemplo, no papel dos figurantes no cinema: são atores treinados e coreografados cujo papel é complementar uma cena, mas sem tirar a atenção do primeiro plano.
Barks fazem exatamente a mesma coisa, mas na forma de texto.
Tipos de diálogos
Em videogame, a categoria "diálogo" engloba diversos tipos de falas diferentes: temos diálogos no sentido cinematográfico, que acontecem em cenas predefinidas ou animadas separadamente e funcionam de maneira parecida a filmes ou séries, geralmente sem controle do jogador; temos o diálogo mais "literário", bem comum em certos estilos de RPG, onde personagens discorrem de maneira mais detalhada ou falam frases mais longas, enquadradas em uma caixa de texto própria e interativa, na qual o jogador dita o ritmo da leitura; tutorais também podem ser considerados "diálogo", onde um interlocutor — o jogador — é silencioso, enquanto outro — o próprio jogo, ou algum personagem ensinando a jogar — comunica instruções como se fosse uma conversa informal, em vez de um manual passando instruções.
Essas categorias não são oficiais, é apenas uma maneira didática de exemplificar algumas situações, porque nada é definido e separado de maneira tão clara assim no mundo dos jogos. Porém, fazer esse tipo de análise entra no rol de habilidades que o tradutor precisa desenvolver, já que é essencial para saber como lidar com cada situação.
Dicas
Embora não existam regras ou classificações oficiais, é possível olhar para um texto — mesmo quando não há contexto — e extrair informações suficientes sobre a forma e apresentação dele, permitindo que o tradutor decida então como abordar a tradução. Uma boa abordagem é se perguntar: qual é o estilo desse personagem? Como ele fala e se expressa? Qual a personalidade dele e como isso é exprimido através de palavras? Quais nuances, caso tenha alguma, fazem parte disso?
Estes são pontos que remetem ao que falei no início da newsletter, sobre "captar o estilo" do personagem, entender como ele é em sua essência, e qual a melhor forma de reproduzir isso textualmente. É necessário pensar assim porque nem sempre o texto fonte é consistente com o próprio estilo criado — muitas vezes, mais de um escritor trabalha no mesmo jogo e no mesmo personagem em pontos diferentes — então, se o tradutor estiver trabalhando apenas no feeling da leitura, pode acabar criando uma expressividade inconsistente para o personagem.
Apesar dessa desconfiança com o estilo, o texto fonte ainda é uma grande fonte (haha) de informações, onde detalhes contextuais da conversa podem indicar o tom do diálogo, humor dos personagens e qual a relação entre eles. Mesmo sem contexto, é possível inferir muita coisa a partir de uma conversa — supondo que ela esteja estruturada na ordem correta — e tradutores devem tirar o máximo de proveito disso.
Por fim, essa abordagem também informa decisões técnicas do texto — por exemplo, eu evitaria fazer um sábio falar palavras desnecessariamente longas ou complicadas em uma cena na qual o jogador é apenas um espectador (e também evitaria em barks, por sinal), mas usaria sem problemas um vocabulário mais complexo em caixas de diálogos do mesmo personagem. No fim das contas, tudo vai depender do olhar do tradutor para a situação e a capacidade de avaliar o que fazer.
Em resumo
- Existem diversos tipos de falas em videogames, e não posso deixar de frisar o quão importante é reconhecer cada uma para saber como abordar a tradução. É impossível escrever um guia detalhado para cada situação e personagem, então cabe ao tradutor se utilizar das informações disponíveis — fornecidas pelo texto e/ou pelo cliente — para entregar o melhor serviço possível.
- A separação entre barks e diálogos é algo único e inerente dos videogames, tanto por ser uma mídia interativa, como por exigir a montagem de uma certa "estrutura" — ou "palco" — que seja verossímil com o mundo real, mas sem alterar o foco do jogador. Diferente de um filme ou um livro, o jogador tem a liberdade de explorar o mundo digital ao bel prazer, então é necessário haver conteúdo "extra" para que não se torne uma experiência estéril.
- Mesmo servindo de "pano de fundo", barks ainda são importantes e devem ser tratados com o mesmo cuidado que os diálogos "principais", ou podem acabar quebrando a imersão do jogador caso destoem demais do contexto.
- Nem todo jogo vai ter barks, mas todo jogo possui diálogos, mesmo que não sejam formalmente tratados como tal.
Adendo: diferenças da legendagem
Convém dizer que nunca trabalhei com legendagem de filmes e séries, mas sei que há um conjunto de regras e boas práticas que ajudam a definir certas características, como a quantidade de caracteres mais adequada por linha, como fazer quebras de linha, como definir pausas, posição na tela, cor, entre outras coisas. Nada disso existe em videogame, mesmo que o texto seja dublado e o jogo seja cinematográfico.
Vítimas de sua própria natureza, jogos eletrônicos não passam de programas de computador executando operações complexas em tempo real. Assim como qualquer outro programa, há mil e uma maneiras de fazer algo funcionar de determinado jeito no computador, e há mil e uma combinações de software e hardware influenciando isso. Por consequência, não existem regras que permitam padronizar aspectos do desenvolvimento. Para dar um exemplo (que talvez soe absurdo), seria o mesmo que exigir que todo pintor utilizasse o mesmo tipo de pincel, tinta e tela. Não é assim que funciona.
Fora isso, diferente do cinema, legendas em jogos não são feitas em "pós-produção", mas programadas junto ao resto da interface e renderizadas em tempo real. Programar interface é uma tarefa extremamente complexa que depende de outras decisões técnicas, impedindo a criação de uma abordagem padronizada que sirva para a indústria toda.
Ou seja: não há regras. Exceto aquelas que o cliente exigir.
Post scriptum
Para qualquer pessoa interessada em traduzir videogame, eu recomendo fortemente observar diálogos em jogos de maneira crítica, analisando não só o conteúdo, mas também a forma. Conhecimentos de legendagem sem dúvida são úteis, mas as boas práticas podem acabar não tendo uso real. Da mesma forma, pessoas acostumadas com tradução literária podem ter dificuldade em se adaptar a conteúdos mais dinâmicos — especialmente barks.
Para quem já traduz jogos, convém sempre prestar atenção aos coloquialismos utilizados: por mais fácil ou agradável que você possa achar lidar com falas, traduzir no "automático" é receita certa para inserir — por acidente — maneirismos, gírias e regionalismos que não se adequam ao personagem ou contexto, mas que você usa no dia a dia e não percebe.
De resto, espero que o texto tenha sido informativo e matado algumas dúvidas. A próxima newsletter sai dia 7 de dezembro e será sobre tradução de jogos para dublagem.
Até lá.