01 - Um panorama da carreira de tradutor de videogame
Como funciona essa área de tradução e quais habilidades são importantes desenvolver.
Conforme o tempo passa e ficamos melhores em algo que fazemos todo dia, existe uma tendência de esquecer como foi o início, das coisas que não sabíamos e fomos aprendendo na marra. Coisas que parece óbvias ou naturais agora, mas podem não ser para quem está começando. É muito difícil mensurar o que pode ou não ser relevante porque cada pessoa tem uma experiência diferente e, sendo assim, acho que uma boa forma de começar essa newsletter é tagarelando sobre o que considero importante saber, mesmo que possa soar óbvio.
Então, bora lá.
Tradutor de jogos tem que ser generalista
Talvez seja óbvio, talvez não, mas quem deseja trabalhar com videogames precisa ser um ótimo tradutor generalista. Por "generalista" aqui, não estou dizendo que precisa dominar vários assuntos diferentes (embora isso seja algo extremamente positivo), mas sim que precisa ser bom tanto no que é considerado "tradução técnica" como em "tradução literária", já que são dois aspectos que se misturam naturalmente em tradução de jogos. É frequente pessoas serem boas em um tipo e não em outro e, talvez para a surpresa de ninguém, isso causa problemas ou dificuldades.
Tá, ok, imagino que pode ter alguém se perguntando como que esse tipo de coisa se mistura. É algo meio complicado de explicar sem ter exemplos direto em mãos (e não posso usar nenhum, por causa de confidencialidade e tal), mas pense assim:
- Consoles e computadores são objetos de alta engenharia que possuem terminologia própria e instruções que precisam ser incrivelmente claras e específicas para evitar problemas.
- Mecânicas de jogo precisam ser, também, o mais claras possíveis quando explicadas dentro de tutoriais, mas sem abandonar o tom e estilo de escrita que o jogo utiliza, já que o texto frequentemente é exibido nesse tipo de contexto e não como um manual.
- Diálogos, descrições e outros elementos narrativos precisam de um grande toque literário na tradução para manter o elemento textual do jogo engajante, principalmente se a história e os personagens forem os aspectos mais importantes.
(E ainda estou desconsiderando a tradução de termos de serviço e coisas do tipo, que frequentemente precisam ser feitas por pessoas com conhecimento apropriado de legalês.)
Dada a organização caótica dos projetos de localização de videogame, é meio difícil garantir que cada pessoa vai sempre receber texto adequado ao aspecto que ela mais domina. Dá para tentar, claro, mas muitas vezes é impossível separar linhas de UI de elementos narrativos, então quem estiver traduzindo vai precisar alternar entre os vários modos de tradução e ter que ser capaz de entregar um trabalho com qualidade consistente independente do tipo de texto. E vale dizer: essa alternância não é fácil e nem acontece naturalmente. Uma coisa é ter que tocar no aspecto mais "natural" do uso da linguagem – algo necessário para traduzir um texto que soe como pessoas "conversando de verdade" sem cair no modo de tradução automática, onde a frase tem gramática que faz sentido, mas "não é como as pessoas falam" – e outra coisa é olhar linhas de menu e conseguir elaborar um texto que siga um formato consistente, onde apenas expressões e palavras-chaves são trocadas sem alterar a estrutura, mantendo ainda uma leitura agradável e com informações claras.
Uma coisa tá mais envolvida em usar o aspecto criativo, que é livre de regras formais – embora ainda existam boas práticas a serem seguidas – enquanto outra é quase como um quebra-cabeça linguístico. São exercícios mentais bem diferentes.
Fora isso tem ainda um terceiro aspecto, geralmente menos comum mas ainda presente, que é texto de marketing: linguagem de marketing é diferente das linguagens "natural" e "técnica", se tornando um outro tipo que, ocasionalmente, o tradutor de videogame precisa invocar (e entregar com qualidade também).
No fim, os textos de um projeto podem tratar do mesmo conteúdo, mas não significa que a abordagem, na tradução, deve ser uniforme.
É preciso ter conhecimentos básicos de linguística
Atenção: linguística não é gramática. Acho importante destacar isso porque porque pessoas frequentemente misturam as duas coisas. Conhecimentos linguísticos envolvem, sim, conhecer a gramática (e quanto mais, melhor), mas também semântica e pragmática. Melhor ainda se entende um pouco o que são relações paradigmáticas e sintagmáticas.
Quem não estudou linguística pode ver isso e pensar "carai, que monte de palavras difíceis", mas a ideia é simples: é importante entender a relação que existe entre as palavras e o motivo destas palavras serem preferíveis em vez daquelas.
Tradução não é apenas seguir o dicionário para trocar uma palavra de língua estrangeira por outra na nossa língua, mas sim considerar qual palavra melhor se adequa ao contexto, mesmo que ela não esteja indicada nos dicionários bilíngues. É saber analisar a relação entre a palavra, o sentido e o contexto. Mais do que isso, é conseguir entender como e porque essa relação acontece. Cada palavra digitada tem que ser parte de uma reflexão mais profunda, não uma resposta automática ao que está imediatamente na tela.
Isso parece complexo, mas é algo que já fazemos naturalmente quando socializamos, por exemplo. O exercício que o tradutor precisa fazer é pensar mais profundamente sobre isso quando está sozinho, e entender o porquê de determinada estrutura vir mais naturalmente para ele, o porquê dessa palavra soar melhor nessa frase e não naquela, o porquê de uma sentença parecer não passar a mensagem adequada apesar de estar usando as palavras "corretas". É um exercício bem introspectivo e, de certa forma, subjetivo, porque a língua é viva e cada pessoa é um microcosmo à parte, incluindo na forma que se expressa.
Aliás, um assunto relacionado a isso, e que talvez seja polêmico, é o feedback que alguns tradutores recebem de "isso não está soando natural", ou "o estilo está inadequado", e outras coisas que parecem vagas. Em certos casos, são justificativas vagas, sim, mas em outros casos há tanta complexidade envolvida que a explicação do feedback em si seria muitas vezes maior que a tradução, o que acaba sendo inviável de escrever. Porém, um tradutor que consegue justificar suas próprias decisões está mais apto a defender as escolhas que fez frente a um feedback negativo do que um tradutor que traduziu "por instinto".
Vale sempre lembrar que linguagem é uma forma "lossy" de externalizar experiências internas. O trabalho de um escritor é conseguir passar essa experiência de maneira mais clara e menos distorcida possível, e o trabalho de um tradutor é tentar garantir que essa experiência passe por uma segunda camada interpretativa enquanto mantém o núcleo da experiência o mais próximo do original que puder.
É mais importante dominar o português do que o inglês
(Troque "inglês" por qualquer outro idioma-fonte.)
Não tenho como expressar o quão importante isso é: assim como ser bilíngue não torna alguém automaticamente bom tradutor, ser falante nativo de um idioma não torna alguém naturalmente bom escritor. Para ser um bom tradutor, é preciso ser um bom escritor, e vale dizer aqui que chamo de "escritor" quem lida com palavras como profissão, não só quem escreve obras literárias. Redatores e jornalistas precisam ser bons escritores, por exemplo. Por consequência de seu emprego, tradutores também.
E a relação disso com a área é a cruz que o campo de tradução carrega como um todo: embora seja sim muito importante que o tradutor domine o idioma-fonte, ele precisa dominar o idioma-alvo muito mais. Se o foco no ponto anterior era algo "técnico" como linguística, aqui falamos de uma parte mais "criativa": o tradutor precisa conseguir se expressar bem, no sentido de ser capaz de produzir textos que passem a intenção, o objetivo, e que sejam claros em sua expressividade, sem causar confusão, e tentando reduzir interpretações ambíguas quando não intencionais. É preciso entender referências culturais e costurar palavras que comuniquem ao público-alvo o sentido do texto original após passar por um filtro regional. Quando isso não é feito, o resultado frequentemente acaba sendo uma tradução literal ou que "não soa natural".
Tradução de videogames, como dito no início, também é um campo criativo, e a criatividade vai ser expressada no idioma-alvo, então é preciso exercitar esse músculo na própria língua. Quem não gosta de escrever, ou quem tem dificuldade em se expressar com palavras, vai possivelmente enfrentar dificuldades. Além disso, mais do que só lidar com palavras, é realmente preciso ter um conhecimento mais profundo sobre a cultura para a qual se está traduzindo. Ter familiaridade com regionalismos (mesmo que superficialmente), diferentes traços linguísticos, expressões populares... tudo isso é essencial. Porém, também é preciso entender quando uma pessoa troca de um registro mais informal para um formal, quando interjeições são usadas e qual sentido isso carrega e, claro, como escrever uma prosa florida sem soar desnecessariamente verborrágica.
Como diz aquela expressão italiana: traduttore, traditore ("tradutor, traidor"). Há diversas interpretações mais ou menos parecidas sobre o significado dela, mas todas convergem para um ponto parecido: o tradutor precisa "trair" o texto original para que seu verdadeiro sentido possa ser passado adiante em outro idioma. Escrita criativa é, por sua própria natureza, uma externalização das experiências internas. O tradutor, no fim, não passa de um escritor reescrevendo a experiência interna de outra pessoa enquanto impõe, através da tradução, sua própria experiência interna.
Eu genuinamente acredito que quanto melhor escritor um tradutor for, melhor ele consegue manter o sentido original enquanto explora o uso das palavras através dessa experiência interna. Parece contraditório, mas é o que permite pegar uma frase tipo "I'm working my ass off" e transformar em algo como "tô camelando pra caralho", ou "tô trabalhando pra cacete", ou qualquer outra das infinitas possíveis soluções que se adequem ao contexto, em vez de falar "tô trabalhando até cair a bunda".
Tradução de videogame é um reflexo da produção de videogame: puro caos
Diferente de outras mídias, videogame não possui métodos de produção universais. Por ser uma mídia interativa, a complexidade existente é muitos níveis acima até mesmo de animação tradicional ou cinema porque, além da história a ser contada (quando há uma), é preciso levar em consideração o fator "interatividade" e "diversão" para complementar a experiência. Por "diversão", falo o quão agradável é a experiência jogar um jogo, e não se o jogo deixa o jogador mais alegre ou feliz.
Eu nunca traduzi outra coisa que não fosse videogame, então não posso falar com propriedade sobre como outras áreas criativas são mas, até onde eu sei, o mundo literário e o mundo da legendagem lidam com um produto já finalizado e recebem o texto integral para traduzir. Já me falaram que legendagem, muitas vezes, não tem contexto ou a obra em si, mas não muda o fato de que, pelo menos, há acesso ao texto completo.
Em videogame, isso é luxo. Os únicos casos em que recebi um texto na íntegra para traduzir foram:
- Jogos indie com pouco texto, e que estão sendo traduzidos semanas antes do lançamento ou após já terem sido lançados.
- Jogos sendo remasterizados, com relançamento acompanhado de tradução para novos idiomas.
Em todos os outros casos, a tradução aconteceu enquanto o jogo era produzido, o que significa que o texto foi traduzido enquanto o original era escrito e editado.
Dá pra imaginar a loucura que é isso? Pensa só como seria traduzir um livro que o escritor ainda está escrevendo, enquanto o editor edita, e tá tudo fora de ordem. Você não sabe a progressão dos acontecimentos, o que o autor planeja, o que o editor quer, se o que você tem na mão é rascunho ou versão final, se algum termo é importante ou não, e tudo enquanto corre contra o prazo para que possa ser lançado em múltiplos idiomas ao mesmo tempo. Adiciona, no meio disso tudo, o fato de ter múltiplas pessoas traduzindo partes diferentes da mesma obra.
Puro caos, mas é como funciona.
No fim, tradutor de videogame raramente tem acesso a contextos completos. Se consegue o roteiro do jogo e imagens de referência, já é muita coisa, considerando que o trabalho geralmente acontece enquanto o jogo não existe ainda. Eu já traduzi cenas em que havia só uma descrição básica do que estava acontecendo (contexto insuficiente), já recebi referências que eram imagens estáticas de cenas sem textura com os personagens em T-pose (falta de detalhes gerais, tipo as características, roupas e trejeitos dos personagens), já trabalhei com arquivos de diálogos em que as conversas estavam fora de ordem, e por aí vai.
Frequentemente, o jogo só toma forma nos meses finais que precedem o lançamento, e só então todas as peças se encaixam. Antes disso, dependendo da organização dos desenvolvedores, eles talvez consigam testar "pedaços" do jogo e ver como as coisas estão, mas não é incomum descobrirem perto do final que a história tá com andamento ruim em certo ponto (depois de jogarem uma sequência completa), ou que uma mecânica não colabora em nada com a experiência e vai precisar ser cortada (tendo que forçar a edição de várias linhas que fazem referência a isso), e coisas do tipo. Teve um projeto que fiz no início da carreira em que o final do jogo foi reescrito depois de estar tudo pronto, por exemplo.
O que dizer, então, de listas de itens ou frases de interface que chegam sem contexto algum? Do tipo "será que esse 'save game' aqui é botão ou título de janela?", ou "que ação será que esse 'play' faz, supondo que seja um verbo e não substantivo?".
Eu não acho que um tradutor de videogame precisa ser alguém viciado em jogos, mas acredito que ter a capacidade de jogar e avaliar criticamente o que joga, analisando os elementos interativos e interface, adiciona um certo repertório que facilita lidar com esse tipo de situação onde não há muito o que fazer além de chutar o contexto mais provável.
Existem projetos onde é possível mandar perguntas e tirar dúvidas, e frequentemente há uma etapa de LQA (Linguistic Quality Assurance) para pegar problemas quando o jogo já tem uma versão jogável pré-lançamento. Porém, é difícil garantir a qualidade sem ter o repertório adequado e sem a capacidade de conseguir trabalhar em meio ao caos.
Experiência não é algo objetivamente mensurável ou absoluto
Vez ou outra, vejo gente nova na área indicando o total de palavras que já traduziram sobre um determinado assunto. É uma abordagem compreensível porque, de certa forma, é um comprovativo de experiência para quem ainda não tem portfólio. Fora isso, algumas agências exigem que o tradutor diga o quanto já traduziu, o que passa essa impressão da quantidade ser importante. Vale dizer que outras tantas "agências" (se é que podem ser chamadas assim) focarem em MTPE ou tradução de "IA" também enaltece mais o volume do que a qualidade. Porém, a verdade é que a quantidade de palavras traduzidas ao longo da carreira não importa tanto.
Tá, mas por que eu falo isso? Porque já trabalhei com gente novata na área que traduzia tão bem quanto alguém com 5 ou mais anos de experiência. Frequentemente trabalho com pessoas que têm metade do meu tempo de experiência mas traduzem tão bem – se não melhor – do que eu. E mesmo com meus mais de 10 anos batendo teclas no teclado, ainda cometo erros ocasionais que iniciantes também cometem. Ninguém é perfeito e ninguém sabe tudo. Esse é um mantra que todo tradutor precisa lembrar, na minha opinião, porque apesar de experiência ser algo bom, não é algo absoluto ou mensurável.
Para deixar claro, eu não julgo quem faz marketing de si próprio usando quantidade de palavras traduzidas como um ponto forte de venda porque há, realmente, agências que se importam com isso. O que falo aqui é só para não pensar que, em outras agências ou sob outros contextos, isso vai ter alguma relevância, porque muitas vezes não tem. Tradução é um campo de trabalho em que não existe um "pico de conhecimento" que alguém atinge e pronto, não precisa aprender mais nada, não precisa melhorar mais, já sabe tudo o que precisa. Não dá para trabalhar "automaticamente", batendo o olho na tela e já digitando por reflexo as palavras que vêm à mente. Ganhar experiência traduzindo é importante, mas não há maneiras objetivas de se medir isso (nem com testes, que é um tópico que pretendo abordar em detalhe no futuro). Tradução em área criativa, assim como outros campos artísticos, é uma caminhada eterna sem destino, principalmente se tratando de videogames, onde cada projeto tem suas próprias particularidades e estilo.
A única vantagem real que a experiência traz é conhecimento sobre como a área funciona e melhor capacidade de negociação (ainda que dependa muito de cada caso). Um tempo atrás eu comentei em uma conversa, brincando, que a diferença entre um tradutor "júnior" e um "sênior" é que o sênior sabe ler a mente dos clientes. É mais ou menos isso mesmo: alguém com experiência já nota, seja pela forma de comunicação da agência, ou pelo tipo de teste, ou pela "vontade" de se comunicar, qual a expectativa do cliente.
No fim, experiência ajuda a lidar com aquilo que não é dito, não por malícia ou sabotagem, mas porque definir expectativas de maneira objetiva é mais difícil do que se parece. Ter maior facilidade na capacidade de comunicação e compreensão, ou mesmo na resolução de problemas, pode ser tão importante quanto a qualidade da escrita.
Post scriptum
Tem muito mais coisas que acho válidas de serem abordadas mas, para evitar arrastar demais essa primeira newsletter com informações vagas e generalizadas, é melhor tratar certos assuntos de maneira separada no futuro. Os pontos citados aqui também vão ser abordados com mais detalhes em algum momento, já que o objetivo desse primeiro artigo era mesmo só dar uma ideia geral da área.
Como sempre falo, nada do que eu digo é regra, é só a perspectiva de uma única pessoa, mas tem certas coisas que considero como aspectos universais quando se trata de traduzir videogame.
Mês que vem eu volto pra tagarelar mais um pouco sobre outro assunto.